Morte no Nilo 2022, por Tommy Beresford

Durante todos esses anos de siri cascudo nessa indústria vital, uma máxima para mim sempre foi essencial: “Nunca espere que uma adaptação cinematográfica seja fiel à obra literária original”. Bem óbvio: são formas bem distintas de contar a mesma história; ainda assim, “expectativas são criadas”, e muita gente quer ver na telona tuuuudo que leu no livro (please, não façam isso). Em adendo a essa frase fatal, há também outras duas necessárias: “Há adaptações muito fiéis que não se tornam grandes filmes; algumas são um espantoso fiasco” e “Há adaptações não muito fiéis que são excelentes”. Em meio a isso tudo, há excelentes exceções onde tudo deu certo; preciso citar “A Cor Púrpura”, um excelente livro que, em 1985, se tornou um filme maravilhoso nas mãos de Steven Spielberg e Menno Meyjes, bem diferente dos inesquecíveis escritos premiados de Alice Walker; recentemente, se tornou um musical inesquecível através da adaptação para o teatro feita por Tadeu Aguiar e Artur Xexéo em cima da adaptação de Marsha Norman. Três obras incríveis e totalmente diferentes, as três unidas pelo mesmo fio, as mesmas ideias, em mídias e formatos diferentes.

Kenneth Branagh

Nem sempre a conjunção de excelências acontece. Em minha resenha de “Assassinato no Expresso do Oriente”, em dezembro de 2017, deixei clara uma dualidade curiosa: a versão de 2017 de Kenneth Branagh para o clássico de Agatha Christie era um bom filme, mesmo sendo pouco fiel ao original da Dama do Mistério. Como fã de Agatha desde longínquos 1982, eu não poderia deixar de fazer as críticas necessárias, já que algumas situações jamais foram escritas pela autora, e algumas nem sequer eram aceitáveis. Ainda assim, o filme era uma produção caprichada e que não chegava a causar repulsa: leitores menos exigentes e cinéfilos que não conheciam o livro tinham à sua disposição um entretenimento policial de qualidade.

Armie Hammer

Chegou 2020 e veio a ansiedade de todo fã pela nova adaptação de “Death On The Nile”, que já havia inclusive sido anunciada ao final do “Expresso”. Com as filmagens já terminadas, os planos de lançamento foram adiados não somente por conta da pandemia de Covid-19, mas também pela “polêmica canibalesca” envolvendo o protagonista Armie Hammer (de “Me Chame Pelo Seu Nome”). Somente a partir de 10 de fevereiro de 2022, os brasileiros corajosos puderam correr aos cinemas para finalmente conferir a adaptação de Branagh.

Antes de comprar o ingresso, aproveitei e, como me é habitual, reli a obra lançada em 1937 alguns dias antes de assistir ao novo filme na telona. Ingênua e positivamente, fiquei com a esperança de que as principais diferenças fossem apenas uma “questão de tintura”. Logo na primeira página, Agatha descreve Linnet como “uma moça de cabelos dourados e feições autoritárias, muito bonita.”. Poucas páginas depois, aparece Jacqueline como “uma criatura pequena, delgada, de cabelos negros volumosos.”. Afinal, é tão comum e não é pecado inverter as características (Gal Gadot tem cabelos negros e Emma Mackey é quem aparece com os cabelos dourados, ambas lindas por sinal)… Tolinho.

Gal Gadot

Daqui pra frente, spoilers “discretos” são necessários. A primeira sequência é tão patética e inesperada que por algum tempo achei que a sala havia começado e exibir o filme errado. De repente, Poirot aparece e… meu Deus, Deus meu, pra quê aquilo? Por quê? Porcausdiquê essa historinha desnecessária como entrada de “Morte no Nilo”, se o que é mostrado não tem qualquer importância com o que virá?

Daí pra frente, é susto atrás de susto. A sequência logo em seguida, em que Linnet e Simon se encontram pela primeira vez, não reflete como eles se conheceram de fato, e nem havia Poirot presente, nem a cantora que conhecia Linnet e… como assim uma cantora? Como assim uma cantora que conhecia Linnet? Okay, vamos engolir o choro, comer um biscoito por baixo da máscara e seguir adiante…

Russell Brand

Nessas adaptações, sempre é possível nos depararmos com personagens “alterados” e, gato escaldado com a obra anterior de Branagh, já esperava algumas mudanças fortes, só não imaginei que dessa vez fossem tantas e tão sensíveis. No livro original, o personagem vivido no atual filme por Ali Fazal é Andrew Pennington; agora, com novas características e participação bem mais discreta, o advogado e “Tio Andrew” ganhou o sobrenome de… Katchadourian. Já o Dr. Bessner virou Dr. Linus Windlesham, interpretado por Russell Brand, que seria ex-noivo de Linnet… oi? Calma lá que fiquei confuso. No filme, o médico é portanto uma mistura de Bessner com Lorde Windlesham, que no livro era sim pretendente de Linnet, citado nas primeiras páginas mas que, no decorrer da trama literária, nem aparece mais. No filme, o novo Linus Windlesham, além de demorar a ter uma fala e de “acudir mortos e feridos”, nutre sua paixonite ciumenta (e suspeita) por Linnet. Eita… Okay, a essa altura ainda estou bastante paciente, aceitei mais estas alterações, embora não tenha visto necessidade.

Tom Bateman

Mas, pelamor, quem é Monsieur Bouc mesmo? Aí precisamos forçar a memória e lembrar que é um personagem vivido por Tom Bateman no “Assassinato no Expresso do Oriente” de Branagh (Bouc era diretor da Compagnie Internationale des Wagons-Lits) que NÃO EXISTE na história do Nilo… pra quê, gente? Devolvam o Coronel Race (um dos melhores personagens da bibliografia de Agatha e que, este sim, está nas páginas de “Death On The Nile” e com destaque)! Bouc surge no Nilo soltando pipa (oi?) e ainda colocaram Annette Bening como sua mãe, outra personagem que não existe na trama original, para… para… não sabemos para quê… Annette, sempre talentosa, faz uma personagem desnecessária, patética e cujo “tubo de tinta vermelha” entra na trama principal… Affff… tragam de volta os vidros de esmalte!

Ainda assim, a questão do esmalte não é o que estraga a principal cena da história (uma de minhas preferidas de todos os livros de Agatha). No livro, é Jacqueline quem insiste para “ter plateia”; no filme, não. No livro, é Jacqueline quem chuta a arma (ato essencial na trama); no filme, não. O timing da cena é ruim, porque induz o espectador ao erro quanto à permanência de Simon sozinho. E, posteriormente, Simon fica realmente mal, a perna está tão ferida que ele não tem condições de sair da cabine e chega a ter febre; no filme, ele é carregado de um lado para o outro com a melhor cara do mundo. Outra situação crucial na trama é o encontro e a conversa de Simon com Jacqueline depois do tiro que, no livro, é um pedido dele. No filme, é um bilhetinho en passant. Me poupem.

Annette Bening

Esqueçam cleptomania, garrafas jogadas do convés, a história de Joanna Southwood, o “J” escrito a sangue na parede, crucifixo, Mr. Ferguson, Jim Fanthorp, Cornelia Robson, Signor Richetti, Tim Allerton e sua mãe… muitas situações e personagens foram suprimidos. O destino de Louise Bourget é… melhor nem co(me)ntar. A terceira vítima do livro é outra, a original passa ilesa no filme… Até o colar de pérolas vira outra joia… A relação entre Miss Bowers e Miss Van Schuyler surpreenderá muita gente. Aliás, no filme Linnet já conhecia todo mundo anteriormente… ela até paga para que todos a acompanhem em sua lua de mel fluvial, jizuismariajosé… Para citar só mais uma escalafobetice, a aparição de Jacqueline no Karnac é em momento diferente da chegada contada no livro, e quase precedida de uma tempestade de areia… Tá puxado.

Há coisas boas? Claro que sim. Visualmente, é um filme deslumbrante. Bela direção de arte, fotografia arrasadora, uma ótima trilha de Patrick Doyle, a protagonista Gal Gadot como sempre magnetizante e uma direção eficiente de Kenneth Branagh. Mas nada disso é suficiente para um roteiro tão “deturpador” da obra original de Agatha. Afinal, se não bastasse todo o resto, como suportar Poirot apontando arma pra todo mundo, correndo atleticamente por escadas e convés, escapando de tiroteio… epa… tiroteio? Que tiroteio, Branagh? E aquelas cicatrizes gigantes? Pelamor.

Emma Mackey

E há Emma Mackey. A Jacqueline de Bellefort de Emma Mackey (de “Sex Education”) é a personagem mais interessante do filme mas, cataploft, quase some da metade pro fim. Ainda assim, Emma brilha intensamente. Menção também para o Simon de Armie Hammer; pena que Branagh tenha perdido tanto tempo explicando o bigode de Poirot ao invés de apresentar melhor o “homem que troca de noiva”. Uma pena. A Linnet da supracitada magnetizante Gal Gadot é menos poderosa, mais frágil que a do livro, um pouco mais ousada, mas “no conjunto da obra” os três compõem um bom trio. Branagh perde tempo demais com outras tramas inventadas, com escolhas equivocadas que às vezes cansam o espectador. E com Annette Benning: pra quê, meu bem?

Até então, para mim, a versão cinematográfica “definitiva” era a que foi lançada em 1978, Oscar de Melhor Figurino em 1979. No Brasil, esta versão (de John Guilhermin) recebeu o título de “Morte Sobre o Nilo” e, como a atual, também tinha um elenco estelar: Lois Chiles, Mia Farrow, Simon MacCorkindale, Bette Davis, George Kennedy, Olivia Hussey, entre muitos outros, além de duas grandes atrizes que foram indicadas ao BAFTA como coadjuvantes: Angela Lansbury e Maggie Smith (Peter Ustinov, que fazia Poirot, também concorreu ao BAFTA de Melhor Ator pelo filme, e o Coronel Race existia no filme de Guilhermin, sob a batuta do inesquecível David Niven). Há outras versões e, nos últimos anos, qualquer adaptação agathachristiana com David Suchet como Poirot é digna de menção. Continuarei com a de 1978, e tentarei revê-la em breve para superar esta decepção de fã e cinéfilo. O livro de Agatha Christie é um de meus favoritos de sua excepcional obra e é, por muitos, considerado uma de suas melhores histórias. Não basta, porém, capricho na produção e uma fotografia impressionante: falta tudo ao filme de Branagh. Infelizmente.

Tommy Beresford

Publicado originalmente em
https://cinemagia.wordpress.com/2022/02/12/resenhas-morte-no-nilo/

Por Que Não Pediram a Evans: Primeiras cenas

O perfil do Facebook do Literatura Policial publicou as primeiras imagens da adaptação de Hugh Laurie para “Por Que Não Pediram a Evans?”, com estreia em breve:

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